Falando sobre interpretação de sonho
Por José Teotonio
“[…] um só pedal mil fios move,
Nas lançadeiras que vão e vêm,
Urdem-se os fios despercebidos
E a trama infinda vai indo além.”
Goethe, Fausto, Parte I [Cena 4].
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Conforme Freud, em “A Interpretação dos Sonhos” – 1900 – uma das condições para que se dê o trabalho do sonho é o afrouxamento da vigilância do pré-consciente (Pcs).[1]
[1] O ensaio freudiano de 1900 sobre os sonhos é nossa referência neste texto e, portanto, a reflexão aqui exposta sobre o despertar do sonhador leva em consideração a primeira tópica de Freud.
Quando o sonhador desperta, por algum tempo permanece em estado de sonolência, ainda sob efeitos do sonho, que podemos chamar estágio de semiconsciência. Esse talvez seja um momento privilegiado no sentido de possibilitar conexões entre o material manifesto do sonho e a consciência de quem sonha, razão pela qual é acompanhado de confusão mental, quando não se está propriamente nem dormindo, nem acordado: estado de modorra. É quando o sonhador mais se dá conta do próprio sonho, lembra-se dele com considerável riqueza de detalhes e até mesmo como que continua o sonho, embora, uma vez despertado efetivamente, sinta esvaírem-se os detalhes que bem há pouco pareciam tão nítidos, sobrando-lhe somente pedaços que, ao longo das horas do dia – e mesmo dos minutos seguintes ao despertar – esfumaçam-se, desmancham-se numa espécie de perda de memória. [2]
[2] Há quem, no afã de não perder os conteúdos do sonho, no meio da noite, enquanto dura o torpor, tome nota dele, mas, em muitas vezes, ao amanhecer, ao ler as notas, não reconhece seu conteúdo, ou somente reconhece pequenos pedaços dele.
Ao que parece, com o despertar, ao se fecharem os canais de comunicação entre as instâncias do aparelho psíquico, permanece o material onírico, em grande parte, do lado de lá da consciência, espécie de espectadora convidada que, ao terminar o espetáculo onírico, guarda dele algumas poucas lembranças – ou nem isso em tantas vezes. Outras vezes, entretanto, a consciência parece ir além desse papel e, talvez devido a um certo quantum menor de entorpecimento, participe do que Freud chama a elaboração secundária do sonho, o material do sonho ganha uma fabulação, uma dramatização, um alinhavo mais bem apropriado ao modo de operar da consciência, embora essa elaboração não seja exclusividade desse momento de modorra.
O que pretendo observar aqui é a ocorrência, na modorra, de desdobramentos associativos do sonho vivenciado durante o sono com pensamentos, imagens e lembranças espocadas na mente do sonhador como se estivesse ele numa sessão de análise em que é tomado por um precipitar vertiginoso de pensamentos involuntários. Para isso, parto da narrativa de um sonho relatado por LS, pessoa de meu relacionamento e que, portanto, não é meu paciente. [3]
[3] Durante o relato, tive o cuidado de manter-me como ouvinte, procurando não interferir com interpretações minhas. Segundo Freud, “[…] uma interpretação […] que não leva em conta as associações do sonhador, ainda é, no melhor dos casos, um virtuosismo não científico de valor duvidoso […] Ainda que mediante a prática cheguemos a compreender muitos sonhos em cuja interpretação o sonhador teve pouca participação, não devemos jamais esquecer que a certeza dessa interpretação é discutível, e hesitaremos em impor nossa conjectura ao paciente.” (FREUD, A Interpretação dos Sonhos).
Embora os exemplos pudessem multiplicar-se, pois não se trata de ocorrência rara, penso que, para a reflexão pretendida, uma observação de caso seja razoável, podendo os pontos observados serem facilmente transpostos para ocorrências outras similares.
LS tinha 40 anos na época da nossa conversa sobre o sonho dele, que passo a transcrever do modo como minha memória conseguiu reter.
LS: Fazia tempo que eu não tinha um sonho tão… nítido. Foi o mesmo tipo de sonho que tenho tido, mas dessa vez foi diferente.
EU: Diferente, como?
LS: Ultimamente tenho tido pesadelos, mas acordo e não me lembro de quase nada. Desse eu me lembrei bem mais.
EU: Foi um pesadelo?
LS: Foi. Minha mulher me acordou e disse que eu estava gritando. (Pausa). Eu sonhei que estava sozinho num galpão… era noite… havia pouca luz, uma luz amarelada de lâmpada antiga. Mas não era um galpão… era uma espécie de loft, um prédio de andares com um loft em cada andar. O meu estava quase vazio. Havia uma mesa. Em cima dela, uma mala aberta. Eu colocava roupas minhas dentro da mala. Acho que eu ia viajar… Ou eu tinha que desocupar o loft, não sei por quê. Não era meu, era alugado, eu acho… eu morava lá, dormia lá… Tinha que manter o lugar limpo. Por alguma razão, eu tinha que sair. Na verdade, eu não sabia por que tinha que desocupar o loft, mas tinha. Então, eu arrumava as minhas roupas. Não tinha mais nada ali, só a mesa escura e a mala velha marrom escuro, como essas malas antigas de papelão, sei lá… E eu nem sei de onde eu tirava as roupas pra pôr na mala. (Pausa. Muda o tempo verbal). Sinto uma ansiedade crescendo. Pressa, tenho que arrumar a mala rápido… Então entendo: a senhoria que me aluga o loft vem subindo a escada, inspecionando cada andar, cada inquilino. Isso me deixa ansioso. Tenho que terminar com a mala antes dela chegar. Estou na tarefa com as roupas e, ao mesmo tempo, vejo a imagem externa da escada, como uma cena de filme registrada sob dois enquadramentos diferentes, só que é simultâneo. Como se eu estivesse, ao mesmo tempo, arrumando a mala dentro do loft e no corredor, do lado de fora, vendo a senhoria subindo a escada. Como se eu fosse dois, mas sendo somente um. É um lugar sujo, um antro. A escada e o corredor são também pouco iluminados, o corrimão é carcomido. O eu que está arrumando a mala escuta os passos da senhoria vindo pela escada, esbravejando palavras que não compreendo, mas isso vai me angustiando cada vez mais. E o eu que está vendo a cena da escada, acompanha os movimentos da senhoria, que entra, andar por andar, loft por loft e, da porta, ralha com o inquilino. E vai subindo, e repetindo o gesto, aproximando-se do meu andar. Ela é gorda, veste roupas antigas, velhas, puídas. Tem um lenço seboso amarrado na cabeça, escondendo uma enorme cabeleira. Chega ao meu loft empunhando uma lata de tinta spray. Aqui passo a ser somente o eu de dentro do galpão (porque é um loft de prédio, mas é galpão também, e é muito amplo). Ela vai direto a uma parede branca perto da porta de entrada, bem na minha frente, mas com alguma distância, e começa a pichá-la com o spray. Vejo a tinta preta saindo, ouço o ruído. Ela picha um círculo preto grande na parede para me punir porque eu ainda não fui embora. Na medida em que ela vai desenhando o círculo, minha angústia vai se tornando insuportável. Sinto culpa e tenho medo das feições cruéis dela. O galpão é vazio e muito limpo, a parede é limpa, e a sujeira que ela faz com o círculo de tinta preta a escorrer pela parede dói-me profundamente, mas permaneço paralisado diante da cena. Ela se volta para mim e avança vagarosa em minha direção, apontando-me a lata de spray em riste. Agora não tem mais o lenço na cabeça, aparecem os cabelos crespos emaranhados. Grito com muito medo e culpa: “Não, mãe, não mãe”! Nesse momento, sei que estou deitado em minha cama e vejo minha esposa sobre mim, me olhando de cima para baixo. Sei que estou sonhando e que minha esposa tenta me acordar. Esforço-me para acordar, mas não consigo, o que aumenta mais minha angústia. E continuo gritando: “Não, mãe, não mãe”! Quando finalmente acordo, por um lapso de tempo tenho a impressão de ver minha esposa com cabelos de bruxa. Essa percepção se desmancha rapidamente e noto que estou com a bexiga muito cheia, dolorida, quase explodindo. Levanto-me sonolento e vou ao banheiro urinar. Sento-me no vaso e espero. Porque é mais confortável sentar-me, minha bexiga demora muito pra esvaziar quando está muito cheia. (Pausa).
EU: E o que você pensou sobre o sonho?
LS: Eu ainda não pensei nada. Quer dizer, no banheiro, vieram uns pensamentos, umas imagens, umas lembranças… durante o tempo em que estive sentado mijando. Eu ainda estava sonolento… meio acordado, meio envolvido ainda no clima do sonho… Um amontoado de coisas na minha cabeça… Sem controle, sabe?
EU: Controle sobre o quê?
LS: Sobre o bombardeio dos pensamentos. Simplesmente eles vinham… Era como se os pensamentos pensassem dentro de mim. Aí, depois que saí do banheiro, peguei o celular (eram 4h da madrugada) e anotei o sonho e os pensamentos. Deitei-me e voltei a dormir. De manhã, fiquei tentando lembrar… Fui ler as anotações. Muitas delas eu lembrava sozinho, algumas eu lembrei por causa da leitura. Mas tinha uma palavra que eu sequer lembrei de ter escrito, quanto mais de ter pensado… Era a primeira palavra das anotações, isolada do restante: “estricnina”. Tomei um susto. Estricnina é um veneno, um pesticida.[4]
[4] Por minha conta e risco, sem dizer a LS, mas só depois de findada a sua narrativa, associei a estricnina com o ambiente sujo do cenário de seu sonho, que poderia muito bem ser propício à presença de ratos e baratas. Por curiosidade, fui pesquisar sobre esse pesticida e descobri que alguns dos efeitos no ser humano causados por sua ingestão são análogos a sintomas provocados pelo pânico, como medo, sudorese, tremores e dificuldade em respirar. E o sonho de LS era de angústia.
A partir daqui, LS começa a relatar os pensamentos que o tomaram de assalto durante a modorra que, no meu entender, não se tratava da continuidade do sonho propriamente, nem de elaboração secundária, mas de algo próximo ao que Freud atribuiria ao método de interpretação dos sonhos tal como ele propôs em seus escritos, como no trecho de “Interpretação dos Sonhos” que destaco:
“Nosso procedimento consiste em abandonar todas as representações com meta que costumam dominar nossa reflexão, dirigir nossa atenção para um elemento onírico e anotar o que pode nos vir de pensamentos involuntários acerca dele. Depois tomamos outro componente do conteúdo onírico, repetimos com ele o mesmo trabalho e nos deixamos guiar por nossos pensamentos, despreocupados com a direção em que eles nos levam, e assim passamos de uma coisa a outra. Nisso abrigamos a expectativa confiante de que no final, sem nossa interferência ativa, daremos com os pensamentos oníricos dos quais surgiu o sonho.” (FREUD, A Interpretação dos Sonhos).
Naturalmente, na experiência da modorra, LS não deliberou guiar-se por método algum, mas espontaneamente foi tomado por associações livres estimuladas pelo sonho, no momento em que a censura do pré-consciente (Pcs) ainda se achava afrouxada devido à sonolência.
LS: Eu lembro que fui ao banheiro ainda sob o efeito do medo da figura de minha esposa com cabelo de bruxa. Então me veio à mente a imagem da atriz estadunidense Oprah Winfrey, na série “Greenleaf”, a que estou assistindo toda noite antes de dormir. Na série, ela tem um cabelo comprido, armado e desalinhado.[5]
[5] Curiosamente, a série “Greenleaf” trata de uma família de líderes evangélicos às voltas com a moralidade e a imoralidade, tema que ficará melhor associado ao sonho de LS mais a seguir.
E, a partir daí, várias coisas foram aparecendo na minha cabeça, como se eu estivesse vendo um filme passar na minha frente. Tudo muito rápido. Sabe o moribundo, a vida dele passando na cabeça em poucos segundos? Foi mais ou menos isso. Depois da Oprah, veio o Raskólnikov, o personagem de Crime e Castigo, de Dostoiévski, sabe? Veio a cena dele diante da porta da velha pra matá-la. Eu tinha tido insônia naquela noite e resolvi começar a reler Crime e Castigo. De manhã, lembrei que tinha parado a leitura justo nessa cena. Depois, veio a lembrança do galpão onde eu e meus irmãos moramos quando éramos crianças. Eu tinha cinco anos, o segundo dos quatro filhos. Meu irmão mais velho tinha seis, meu outro irmão, quatro e a caçula, três. Um ano de diferença de um pra outro, escadinha, como diziam os meus parentes.[6]
[6] O termo escadinha fez-me supor alguma associação possível entre as crianças e a escada por onde subiu a figura da senhoria do seu sonho. Retornaremos a esse elemento. Diante de mim, após o sonho, as suas associações na modorra, suas anotações, LS continuava produzindo mais associações. Segundo Freud, um mesmo sonho pode provocar muitas associações, inclusive em variadas direções e produzir uma verdadeira rede de associações e interpretações.
Moramos, por empréstimo, nesse galpão amplo e vazio, durante o tempo em que meu pai teve de deixar esposa e filhos e despencar pra São Paulo à cata de vida melhor.[7]
[7] No ato de seu relato para mim, ao ter de situar as imagens e lembranças da sua modorra, ao verbalizá-las, LS não só retarda o efeito veloz de sua experiência como produz novas informações que funcionam como novas associações, numa espécie de esmiuçar analítico no sentido de operação de linguagem que, por conseguinte, produz associação psíquica e abre possibilidades de interpretação, como no caso do termo escadinha, que não era uma imagem explícita nem no sonho, nem na modorra; ou a verbalização da ausência do pai num dado momento da infância de LS, que pode possibilitar ao menos conjecturas de minha parte e, quem sabe, produção de sentidos para LS.
Então, eu me lembrei nitidamente de quando eu mijava na cama e minha mãe vinha me tocar…
EU: Tocar?
LS. Não, Trocar. Eu quis dizer trocar. Até uns sete ou oito anos eu ainda mijava na cama. (Pausa). Ali, sentado no banheiro, esvaziando a bexiga, por um instante tive a sensação de como eu ficava quando mijava na cama. Eu nem lembrava mais disso. Mas ali, mijando e sonolento, parece que veio tudo, toda a sensação daquela época…[8]
[8] A partir daqui sua narrativa parece ir revelando o “cogumelo” do desejo formador do seu sonho: “Os pensamentos oníricos que encontramos na interpretação têm de permanecer geralmente inconclusos e ramificar em todas as direções na emaranhada rede do nosso mundo de pensamentos. O desejo do sonho surge então de um ponto mais denso desse tecido, como o cogumelo de seu micélio.” (FREUD, A Interpretação dos Sonhos).
Eu sonhava com coisas de que não me lembro, só sei que eram sensações gostosas… Às vezes, o sonho terminava com uma cena em que eu mijava e sentia muito gosto em mijar no sonho. Só que, no próprio sonho, eu tomava consciência de que estava molhando a cama e tomava um baita susto e acordava aflito. A partir daí, começava o meu tormento. Muita culpa e muito medo. E nas noites de inverno era pior porque a urina esfriava a cama e eu tremia. Minha mãe tinha o hábito de vistoriar os filhos de noite e eu ficava acordado, mijado, com medo da chegada dela e ansiando por isso ao mesmo tempo, porque sabia que ela ia me bater, mas que ia me trocar e eu ia enfim conseguir dormir quentinho. Ela tirava a minha roupa molhada, eu ficava em pé, nu, perto da cama, e ela trocava o forro de cama por outro limpo. Depois, ralhando (“desse tamanho, mijando na cama!”), dando-me apertos e safanões me vestia roupas secas. Eu voltava pra cama, ela ia embora e eu dormia gostoso pelo resto da noite. (Pausa). Tudo isso veio muito rápido à minha cabeça, enquanto eu urinava sentado e modorrando. Foi veloz, um vórtice! (Pausa). Então, minha mente se voltou pro sonho… Me atravessou a sensação de que a senhoria do sonho era minha mãe… E ao mesmo tempo, eu era o Raskólnikov… Tomei um susto e notei que tinha acabado de urinar. E um pensamento veio em forma de minha própria voz: “Espera aí! Eu não quero matar a minha mãe!” Foi quando saí do banheiro e fui tomar nota de tudo.
A partir desse ponto do relato, LS passou a tecer comentários e levantar hipóteses acerca do sonho. Ele atribuía a ocorrência do sonho à leitura de Crime e Castigo, que havia feito antes de dormir, mas principalmente à necessidade premente de urinar que, segundo ele, de algum modo, fez com que sua mente produzisse aquele sonho. Quanto aos pensamentos da modorra, teriam sido apenas associações motivadas pelo sonho e pela sonolência.
LS: Enfim, somente um sonho.
EU: Um sonho sem importância?
LS: Um sonho estranho.
As observações de LS sobre seu sonho são condizentes com os escritos de Freud acerca do assunto; porém, não em sua totalidade, pois que o trabalho do sonho faz uso de material da vigília e ocorrências noturnas, de elementos do pré-consciente (Pcs) para sua construção e, por outro lado, é por meio de deslocamentos e condensações, que elabora o sonho impulsionado por um desejo inconsciente infantil:[9]
“[No trabalho do sono a] elaboração psíquica anormal de um curso de pensamento normal ocorre apenas quando este se tornou a transferência de um desejo inconsciente de origem infantil e que se acha reprimido. Conforme essa tese construímos a teoria do sonho, sobre a hipótese de que o desejo impulsionador do sonho sempre vem do inconsciente, algo que, como nós mesmos admitimos, não pode ser demonstrado, mas tampouco refutado de maneira geral.” (FREUD, A Interpretação dos Sonhos).
[9] Talvez, a impressão mais justa e suscinta de LS acerca do seu sonho seja sua última frase: “Um sonho estranho”, que me faz pensar no escrito freudiano “O Estranho” (das Unheimliche), de 1919, que refere o sentimento de estranho ao reencontro de algo familiar pertencente ao inconsciente e que permaneceu nos seus recônditos. Enquanto a Editora Imago optou por traduzir das Unheimliche como O Estranho, a Cia das Letras optou por traduzir o termo como O Inquietante.
As associações que o sonho provocou em LS durante o estado de modorra me faz pensar que, favorecido pela sonolência, mas com alguma participação significativa da consciência, esse pode ser um estado privilegiado de acesso aos pensamentos latentes do sonho, como se uma espécie de portal de acesso se oferecesse ao sonhador. Naturalmente, seria necessário um trabalho de setting analítico, a constituição de um par analítico, que se ocupasse com cautela desse sonho, do sonhador e de demais materiais levantados em análise, para que o sonho pudesse ser explorado com alguma segurança e de modo mais esmiuçado.
LS: O que você acha? Como você interpretaria esse meu sonho?
EU: Bem, o sonho é seu, então você é que tem as melhores chaves pra ir abrindo algumas portas.
LS: Chaves pra abrir as portas do meu sonho ou as portas de mim mesmo?
EU: As duas coisas.
LS: Papo de psicanalista!
(Rimos. Mudamos de assunto e voltamos às amenidades).
No final de nossa conversa, ele insistiu no sonho, e me disse que, há muito tempo lera “umas coisas” de Freud sobre sonho, e se lembrava de que sonhar com escada e mijar na cama “tinha a ver” com sexo; e como havia a mãe no sonho, “a coisa podia estar ligada ao complexo de Édipo, essas coisas…”
LS: Será? (Pausa). E o cabelo da senhoria, e da bruxa? Quer dizer, da minha esposa.
EU: O que tem o cabelo?
LS: Sei lá! Todo emaranhado… No sonho, aquilo me assustou. Fala aí!
EU: Olha só: você me disse que, na modorra, associou o cabelo emaranhado da senhoria com o cabelo da personagem da série Greenleaf…
LS: Na série ela é descolada, e a família evangélica dela age com hipocrisias… Eles encobrem os podres.
EU: Talvez você pudesse pensar em sentidos possíveis para coberto, encoberto e cabelo.
LS: E cobertor.
EU: Cobertor?
LS: É, cobertor. Tem a ver comigo na cama, de noite, quando criança. (Pausa). Que mais?
EU: Escada. Você vê relação entre a escada do sonho, a escada de Crime e Castigo e a escadinha de irmãos de que você falou?
LS: Meu pai encomendava um filho por ano (Riso). Vou pensar. (Pausa). Mas o diabo é que ficou parecendo que eu queria matar minha mãe. Mas eu amo a minha mãe! Bom, deixa pra lá.
(Pausa. Rimos e retomamos as amenidades).[10]
[10] LS foi o primeiro leitor deste texto e autorizou-me torná-lo público. Naturalmente, preservei sua identidade.
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