Narciso e narcisismo
Por José Teotonio
Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.
(Alberto Caeiro)
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Em Narcisismo de vida, narcisismo de morte, André Green nos faz lembrar que “Partindo do olhar, Freud liga o narcisismo ao domínio do visível.” (GREEN, 1988, p. 36), o que não é pouco, na medida em que, para um observador atravessado pelas tramas da semiótica peirceana, tal observação aponta para uma inserção da tese freudiana do narcisismo no campo da matriz visual da linguagem e pensamento (SANTAELLA, 2005).[1]
[1] Importante ressaltar que, para Peirce, linguagem não diz respeito somente ao verbal, mas a todo e qualquer fenômeno de tradução de uma coisa em outra por intermédio de ainda outra, desde que apta a vincular as duas; e que a noção de pensamento diz respeito não só ao consciente como também ao inconsciente, mas também a qualquer mente, compreendida por ele de tal modo abrangente que engloba qualquer fenômeno, o que nos habilita a compreender o fenômeno psíquico como singularização do modelo geral formal de semiose formulado por Peirce.
Por outro lado, vamos verificar o uso do termo narcisismo por Freud já em 1910 e 1911, quando de seu estudo sobre Leonardo da Vinci e sobre Schreber, respectivamente, atento – ao que nos parece – à visualidade do fenômeno, bem como a sua manifestação enquanto narcisismo secundário.[2]
[2] O termo narcisismo vai aparecer, também em 1910, numa nota à segunda edição dos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), com o mesmo teor do que se lê no estudo sobre Leonardo da Vinci.
E em seu estudo teórico de 1914 sobre o narcisismo (FREUD, O.C., 1996, vol. XIV), Freud parte de observações patológicas para chegar a uma teoria do narcisismo primário. Notamos, enfim, que é sempre no contexto das manifestações secundárias do narcisismo que Freud faz referência ao mito de Narciso como “um jovem que preferia sua própria imagem a qualquer outra, e foi assim transformado na bela flor do mesmo nome.” (FREUD, 1996, O.C., vol. XX, p. 106). E, retomando Green, ele nos informa da existência de pelo menos quatro versões do mito, dentre as quais, considera a de Ovídio a mais rica por sua alusão ao oráculo, à oposição entre corpo visível e voz, às referências às imagens, etc., e que foi por essa versão que Freud se interessou (GREEN, 1988, p. 84). Pois bem. A partir desses dados começam nossas especulações acerca do mito de Narciso, relacionando-o ao narcisismo como o descreve Freud no âmbito clínico, secundariamente, e no seu aspecto primal. Vamos, então, perscrutar Narciso, tendo em mente a teoria freudiana, sem deixar de investigar eventuais particularidades do mito que, de algum modo, possa contribuir com estas nossas especulações. Enfim, um movimento de revisitação do mito, iluminando-o com a metapsicologia freudiana, atento às hipóteses que o mito nos inspire em relação ao narcisismo.
Nosso esforço traz ao menos duas limitações que, de todo modo, não inviabilizam nossa empreitada. Por um lado, Narciso, como em geral todos os mitos, está intrinsecamente relacionado, histórica e culturalmente, a povos aos quais, a rigor, não pertencemos mais; e também seu conteúdo nos chega atravessado por escritos antigos, eles mesmos, fixações das transmissões orais de tempos mais remotos. Porém, é justamente o fato do mito, ao atravessar as vicissitudes histórico-culturais e permanecer fazendo sentido à nossa cultura, ao nosso tempo, que nos garante que está chancelado e apto, pela tradição, a nos afetar; além do que, importa-nos sua validade dentro de nosso próprio tempo e cultura. Quanto à sua transmissão, ao mesmo tempo em que é impossível recuperar sua oralidade original, mesmo ali, tratava-se não só de transmissão por meio de determinada linguagem, como o mito não seria outra coisa senão linguagem propriamente, da qual não escaparíamos absolutamente. E, para nossa finalidade, julgamos adequado seguir o escrito do mito de Narciso que chegou até Freud – a do poeta romano Públio Ovídio Naso (43 a.C. – 17 d.C.) – porque, segundo Green, foi a versão a que teve acesso Freud. Trata-se de um poema e, portanto, importam os recursos literários empregados, tais como inversões sintáticas, ritmos, metro, construção de imagens, sonoridades, etc., responsáveis por ofertar ao leitor o poema como experiência psico-sensorial.[3]
[3] Ver TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org). 1976. Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo.
A versão de Ovídio para o mito de Narciso (e Eco, sua contraface, a ninfa que ousou amá-lo) está inserida no livro III do poema épico Metamorfoses.[4]
[4] Embora o poema de Ovídio apresente traços épicos, há especialistas que não o consideram como tal. Aos nossos olhos, parece tratar-se de um amálgama de mitologemas postos e interpostos, cuja amarra temática – e também estrutural – são as metamorfoses por que passam determinadas figuras da mitologia greco-romana que o poeta selecionou.
Devido a nossa própria limitação na decifração do original em latim, fizemos uso de uma das traduções para o português que mais nos impressionou por seu poder de nos capturar nas malhas de seus versos, qual seja, a do poeta português António Feliciano de Castilho (1800 – 1875).[5]
[5] Também nos valemos, como auxiliares, das traduções de Francisco José Freire (1719 – 1773), poeta árcade português (apud PREDEBON, 2006), do pesquisador Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho (2010) e de Haroldo de Campos (1998). Constatamos que o poeta português Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765 – 1805) também traduziu parte das Metamorfoses de Ovídio, mas não incluiu o livro III, onde se encontra o mito de Narciso e Eco. Por outro lado, optamos por priorizar as traduções em verso, renunciando às em prosa pelo potencial expressivo das primeiras, bem como por sua provável maior aproximação do original em latim, também em versos. Por meio de recursos poéticos, Ovídio transmutou em linguagem as metamorfoses de criaturas dos mitologemas de que tratou. E seus tradutores impuseram-se o esforço de recuperar esse mesmo procedimento de plasmar nas suas transcriações poéticas as metamorfoses ovidianas.
Encontramos nessa tradução detalhes, filigranas poéticas que abriram portas instigantes às nossas especulações.
Talvez sobretudo pela escolha das palavras do poeta na passagem de Eco e Narciso, bem como o recurso abundante às inversões sintáticas, os versos nos provoque vislumbres de imagens das cenas em questão (a de Eco enamorada de Narciso e a de Narciso enamorado de sua imagem), de modo que o efeito geral provocado é o de captura pela imagem de nossa atenção ao ponto de sentirmos que toda a ambientação da cena e o desenrolar da trama projetam-se para dentro de nós mesmos, produzindo como que uma espécie de suspensão alucinatória, que poderíamos atribuir a um efeito geral do poema o resultado de uma metáfora literária de um estado de alienação narcísica.
Considerando, com Freud, que os mitos são narrativas fundadoras, observamos que o mito de Narciso pode nos oferecer pistas do que acontece no narcisismo originário, fenômeno entre a fase do amor de órgão e o amor objetal, quando da inauguração do eu (FREUD, 1996, “Sobre o Narcisismo…”, vol. XIV, p. 84). Para tanto, desconsideramos a polifonia própria dos mitos, e pautamo-nos no enfoque freudiano do mito, escolhendo observar a cena do poema sob o ângulo de Narciso, omitindo as complexidades de uma observação se, por exemplo, estendêssemos o enfoque para Eco, de modo que a ninfa será, para nós, a contraface do eu, ou seja, como que o objeto-que-não-é na dinâmica do narcisismo.
Preocupada com a desmedida beleza do filho Narciso, Liríope recorre ao adivinho Tirésias para saber se o menino “encheria idade annosa”, ao que o velho cego responde “Si non se uiderit” (“Se ele não se vir”, ou “Se ele não se conhecer”). Porém, o condicional do adivinho embute um vaticínio, como é de praxe nas falas de Tirésias, ou seja, Narciso está predestinado a se ver, se conhecer, e, então, deixará de viver. Trata-se, aqui, da condição humana de impermanência, considerando-se a morte no reino dos mitos como transmutação, que o vate parece já anunciar. Mas Narciso segue o que ainda é, distraído de si mesmo e dos outros, sob a atenção seduzida de ambos os sexos:
Mancêbos mil, mil bellas o requéstão;
Mas tal vai de altivez coa formosura,
Que nenhum, que nenhuma obtem logral-o.
(CASTILHO, p. 140)
Aqui, ele não enxerga ninguém como objeto de sua querença, mas também não se enxerga a si mesmo.
Por outro lado, a ninfa Eco é fundamental no mito de Narciso. Ela está fadada a somente pronunciar os sons das últimas palavras da enunciação alheia. Antes muito loquaz, ela fora punida por Hera a viver repetindo os últimos sons da fala alheia por tê-la distraído com sua loquacidade para proteger outras ninfas da ira da esposa de Zeus, que se empenhava em amores com elas. E Eco, presa pelos encantos de Narciso, vítima de uma trama de mal-entendido, é repelida pelo amado:
Narciso brada: “Olá! ninguem me escuta?”
“Escuta”, lhe responde a amante Nympha.
Elle pasma: em redor estira os ólhos;
E, não vendo ninguem: “Vem cá”, lhe grita;
Convite igual ao seu da parte d’ella.
Volta-se, nada vê: “Porque me foges?”
Clama; “Porque me foges?” lhe respondem.
Da mútua voz deluso, insiste ainda:
“Junctemo-nos aqui”. Frase mais doce,
Nem lh’a espéra, nem quer; delira, e logo,
“Junctemo-nos aqui”, vozêa, em ancias
De o pôr por obra; da espessura rompe,
Vem de braços abertos, anhelando,
Tão suspirado objecto, alfim colhê-o.
Elle fóge; fugindo illude o abraço,
E “Antes, diz, morrerei, que amor nos una.”
Ella, immovel, co’a vista o vai seguindo.
E, ao que ouvio, só responde, “Amor nos una.”
(CASTILHO, p. 141).
Limitada a entoar fragmentos da fala do amado, Eco não estabelece efetiva relação com Narciso. A repetição sonora, entretanto, produz-lhe a ilusão do vínculo no meramente aparente diálogo. Ilusão desfeita quando a Ninfa se dá ao campo visual de Narciso, e esse a repele por não reconhecer nela o alvo de seu desejo. É curioso notar, entretanto, que embora as palavras de Eco sejam como que duplicatas das de Narciso, ele não as toma por imagem das suas, de modo que o espelhamento acústico não produz o efeito arrebatador de sua futura mirada no espelho d’água que virá a seguir. Podemos, então, imaginar que, aqui, o outro não existe como tal (outro-que-não-é) para o quase-eu, que dele só percebe ecos sonoros de um si-mesmo-fragmentário (fase auto-erótica, pré-narcísica), e que, como signo sonoro, icônico que é, não é vocacionado à indicialidade, e não captura as pulsões do eu prestes a ser inaugurado. O signo visual é, por excelência índice, apto a capturar a atenção e remetê-la a um referente.[6]
[6] A linguagem sonora, em tese, é o que é em si mesma, inapta à referencialidade. “Diferentemente do som que inexoravelmente passa sem deixar outro rastro a não ser uma suave impressão na memória, o visível tem algo de estável, destaca-se de um fundo amorfo, adquire a compleição de um objeto” (SANTAELLA, 2005, p. 196); e ainda: “O signo visual captura a atenção da mente a que ele se remete por sua qualidade de existente singular ao mesmo tempo em que remete a mente ao objeto que o determina por sua qualidade indexadora. O signo visual é, fundamentalmente, sin-signo indicial dicente.” (Idem, p. 197).
Eco, assim, é, para Narciso, mera qualidade de sentimento despossuída de sentido, reduz-se à sonoridade, apenas quase-signo. Aqui, enxergamos uma referência no mito à condição de quase-eu, condição pré-egóica, pedaços, fragmentos do que, somente após, será, por ajuntamento pulsional, o eu auto-investido, narcísico.
É interessante observarmos o fim trágico de Eco, a contraface do eu, fadada a não o ser, em face da impossibilidade de existência do eu como totalidade, fenômeno traduzido pelo poeta com beleza e pungência:
Mirra-se mais e mais de dia em dia;
Todo o corpóreo humor se lhe evapóra;
Restão-lhe óssos, e voz: a voz, conserva-a;
Os óssos, diz-se, em pédras se mudárão.
Por isso está nos bósques invisivel,
Em nenhum monte a vem, ouvem-na em todos;
De viva, afóra o som, não tem mais nada.
(CASTILHO, p. 142).
Ora, enquanto o eu não aflorar, enquanto as pulsões parciais estiverem dispersas em cena, o outro não se apresentará como tal ao eu. Por outro lado, com Lacan (estádio do espelho), sabemos que o olho do outro está implicado no nascimento do eu. Incongruência, ao que nos parece, apenas aparente, pois se por um lado o bebê vislumbra sua imago a partir do que lhe oferece o olho do outro (função mãe), há de haver um movimento também do bebê nessa direção, e o fará somente quando reunir condições internas para tanto; por outro lado, remetendo-nos ao modelo peirceano de signo, observamos que, no dispositivo triádico lacaniano, a imago parece funcionar como índice que aponta ao bebê um eu alienado, mas também guarda alguma referência – ao menos formal – do outro que o chancelou.[7]
[7] No final de nossas especulações, voltaremos a uma consequência prática dessa proposição.
Agora, a roda do destino executa seu giro inexorável, promovendo os desdobramentos do encontro/desencontro entre Eco e Narciso. As demais ninfas, irritadas com a insensibilidade e frieza do filho de Liríope, pediram vingança a Nêmesis, que, prontamente, condenou Narciso a amar um amor impossível. Após consumado o episódio relativo a Eco, o poeta passa a tratar mais detidamente de Narciso. Reparemos com que habilidade literária é retratado o cenário do espelho d’água que aprisiona o jovem no amor por sua imagem:
Sem limos, toda esplêndida, manava
Fonte argéntea,* onde nunca os pegureiros,
Nunca do monte as cabras repastadas,
Nem outra qualquer grei, jamais descêrão;
Ave alguma o cristal lhe não turbára,
Nem féra, nem caduca arbórea rama.
Com seu frescor emtôrno se lhe alastra
Molle tapête hervoso, e a cingem bósques,
Do lago contra os sóes perenne escudo.
(CASTILHO, p. 143).
*Fonte de Téspias (cf. BRANDÃO, 1987, p. 180).
Nada nem ninguém, antes de Narciso, havia sequer tocado aquela fonte, cujo espelho d’água refletirá a imagem do herói. É a ele, somente a ele, que estão destinadas as águas que o revelarão a si mesmo, de modo, talvez, a nos indicar que o narcisismo primário é único e inaugural.[8]
[8] Curiosamente, Narciso é justamente filho do rio Cefiso com a Ninfa Liríope, habitante originária dos lagos, rios e fontes, de modo que, nos parece, o ato de Narciso junto à fonte de Téspias guarda uma simbologia de fecundidade, nascimento e sexualidade.
Estado esse que, segundo o mito, podemos inferir que nasce apoiado na necessidade instintiva da hidratação, via oralidade; quem sabe, a simbolizar o sugar o seio materno pelo bebê, conduzindo-se do instinto pelo leite à pulsão escópica, onde, no olho da mãe, enfim se vê como eu, e a si mesmo se prende:
Deitou-se, e, onde cuidou matar a sêde,
Outra mais forte achou. Como bebia,
Vio-se n’agua; enlevou-se em tantas graças:
Julga corpo, o que he sombra, a sombra adora;
Immovel, fito, como pário busto,
Pela pasmada sombra está pasmado.
(CASTILHO, p. 143).
A seguir, como que em novo vaticínio, o poeta adverte que a imagem que Narciso vê no espelho da fonte, não é ele propriamente, ao mesmo tempo que o acompanhará para sempre dentro dele, com o que podemos vislumbrar uma referência à alienação do eu (condição gestáltica da imago no espelho lacaniano):
Néscio! deixa essa imagem fugitiva;
Nenhuma parte encerra, o que procuras;
Sáhe, perderás n’hum ponto o objecto, que amas:
Nada tem de seu proprio, he teu reflexo;
Comtigo vem, comtigo está, comtigo,
Se te podesses ir, tambem se iria.”
(CASTILHO, p. 144).
Num momento seguinte do poema, é o próprio herói que lamenta sua condição trágica, dado o impasse em que se encontra pela contradição a ela inerente:
“Deoses! Que horrivel luz! Sou elle eu mesmo.
Este, o semblante meu! Por mim me abrazo,
E o fogo, em que me abrazo, eu proprio ateio.
Que farei? supplicar? ser supplicado?
Como! se, o que desejo, está comigo!
Por muito possuir nada possuo!
Não poder eu soltar-me de mim mesmo!…
O’ de hum estranho amor desêjo estranho!
Amar, e querer longe o objecto amado!”
(CASTILHO, p. 145).
Está enamorado de si mesmo, carrega dentro de si o objeto que não é outro senão ele mesmo e, por isso mesmo, não podendo ser alcançado como objeto, vê-se tomado pelo desejo impossível e lancinante de afastar-se de si para poder alcançar-se como objeto, porém condenado tão somente à mirada do signo visual de si. Resta-nos indagar o que simbolizaria esse sofrimento tão bem descrito poeticamente. Freud aponta que, na demência precoce, há um esforço da libido para retornar ao objeto, correspondendo a uma tentativa de reintegração ou recuperação, gerando sintomas similares com a histeria e neurose obsessiva, gerando sofrimento no paciente (1996, O.C., “A Teoria da Libido e o Narcisismo”, vol. XVI, p. 422-423). Mas, nesse caso, estamos no campo do fenômeno secundário, o que não é o caso da situação representada pelo mito, simbolizadora do tempo primal, conforme o pressuposto por nós adotado. Nas palavras de Freud, a libido executa “esforços por alcançar novamente os objetos”. E alcançar novamente os objetos naturalmente pressupõe que, em algum momento, eles foram catexizados, o que, em tese, não corresponde ao fenômeno primário do narcisismo, quando não se transferiu ainda libido para fora do eu. Por outro lado, lembremos, ainda com Freud, que prazer e desprazer estão relacionados à dinâmica e economia da libido, e ao indagar “o que torna absolutamente necessário para nossa vida mental ultrapassar os limites do narcisismo e ligar a libido a objetos”, e propõe que:
[…] essa necessidade surge quando a catexia do ego com a libido excede certa quantidade. Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas, num último recurso, devemos começar a amar a fim de não adoecermos. (FREUD, 1996, O.C., “Sobre o Narcisismo: uma Introdução”, vol. XIV, p. 92).
Poderíamos supor, talvez, que o sofrimento – crescente – de Narciso por seu investimento em sua própria imagem diz respeito ao acúmulo da libido no eu a tal ponto que ultrapassa a fronteira entre o prazer e o desprazer, fazendo, quem sabe, no caso do bebê narcísico, com que a libido encontre escoamento na catexia do objeto. Nesse contexto, no trecho acima do poema (CASTILHO, p. 145), talvez Narciso se encontre no limite de saturação do investimento egóico. Coincidentemente, do ponto de vista literário, a curva da trama está no seu pico justamente no momento de maior sofrimento do herói, a partir de quando o poema passa a caminhar para o desfecho, afrouxando-se o nó da tensão dramática, conduzindo o herói para seu destino.
Acerca do sofrimento de Narciso, consideramos instigante destacar uma passagem que nos chamou a atenção por nos fazer pensar sobre as especificidades das consequências imediatas, para o bebê, na ocorrência de fraturas no espelho lacaniano. Ao sinal de desfazimento da sua imagem na fonte:
Eis que ferventes lagrimas perturbão
Do lago o espêlho, e em círculos desfeita
A lustrosa visão lhe vai fugindo.
E Narciso vai ao desespero:
Aflicto de alto abaixo arranca as véstes,
E fére o peito nú co’as mãos de jaspe:
No peito, assim ferido, hum ténue rôxo
Se accendeo; tal costuma apresentar-se
Pomo cândido, em parte, em parte rubro
(CASTILHO, p. 146).
O desmanchar da sua imagem no espelho d’água corresponderia, então, ao aterrador desaparecimento do eu, ao pânico diante da fronteira do não existir, a à intensa ansiedade expressa no choro desesperador do bebê na ausência do olho-da-mãe, antes de ter descoberto (ou inventado) o jogo do fort da observado por Freud no brinquedo do neto com o carretel.
E, enfim, consumada a maldição de Nêmesis – Narciso ardendo em seu amor impossível -, cumpre-se a previsão do vate: teria Narciso vida longeva, se não se visse (Si non se uiderit). Abrasado, leva seu desejo impossível à exaustão e fenece de seu amor por si mesmo:
Do terno, occulto incêndio devorado
Narciso se desgasta, se attenúa:
A mixta côr da púrpura e da neve
Ja se esvahio; sumírão-se com ella
Fôrças, vigor, encanto, o proprio corpo,
De Echo inda ha pouco enleyo.
(CASTILHO, p. 147).
E Eco, que se transformara em rocha, que em toda parte está, mas não se pode vê-la em parte alguma, apenas ouvir seu som repetindo os sons finais dos ditos do amado, segue com ele, sem alcançá-lo, como mero outro-latente, quase-outro, quali-signo:
[…] Esta [Eco] comtudo,
Bem que não lhe ha passado a injúria acerba,
De amor vendo a catástrophe, carpio-a.
Quantas vezes o jóven miserando
Soltára hum ái, com áis lhe respondêra.
Quantas vezes co’as mãos feria os braços,
Déra iguaes sons de lá: foi de Narciso
A derradeira frase, olhando o lago,
“Ai, môço amado emvão!” Foi na floresta
Queixume igual a frase derradeira:
“Adeos” disse o mancêbo, “Adeos” a Nympha.
(CASTILHO, p. 147)
Nesse ponto, em apenas quatro versos, o poeta anuncia a morte de Narciso, não como fim, mas como encantamento em que o herói desaparece e reaparece na dimensão dos ínferos:
Após isto, entre a grâma a lassa fronte
O mísero sumio, cerrando a morte
Olhos não fartos de gozar seu dôno,
Que inda o lá fôrão remirar na Styge.*
(CASTILHO, p. 147).
*Estige, rio do Hades.
E no arremate do mito, o poeta conta que, feitos os preparativos do funeral do herói, ao irem colher o seu corpo, em vez dele, encontram no lugar a “bela flor do mesmo nome”:
Ja fachos, pira, e féretro dispunhão;
Quando, em logar do corpo, achão no sítio
Huma flôr, cróceo o ôlho, as folhas alvas.
(CASTILHO, p. 147).
Ou, como está na engenhosa tradução de Haroldo de Campos:
[…] As tochas fúnebres se agitam.
Mas o corpo não há. Em seu lugar floresce
um olho de topázio entre pétalas brancas.
(CAMPOS, 1998).
Se por um lado, Narciso, na forma de flor, permanece pendente olho voltado para as águas, como que para sempre tomado pelo encanto de mirar sua imago, essa flor-olho exala um perfume inebriante, narcótico, sedutor e perigoso para quem dele se aproximar (noutro mito, Perséfone, embriagada pelo perfume de um narciso, ao tentar colhê-lo na beira de um precipício, desaba no abismo).[9]
[9] BRANDÃO, 1987, p. 181.
A flor narciso passaria a ser, por seu turno – podemos supor, – sin-signo indicial do mancebo que fora outrora, ou, se quisermos, um Narciso secundário. Seu perfume guarda sua qualidade sedutora do passado, enquanto seu “olho de topázio”, aponta sua destinação: procurar por sua própria imagem, numa peregrinação desejante de regressão.[10]
[10] A respeito do poder de sedução dos narcisistas, freud comenta: “É como se os invejássemos por manterem um bem-aventurado estado de espírito – uma posição libidinal inalcansável que nós próprios já abandonamos.” (FREUD, 1996, O.C. “Sobre o Narcisismo: uma Introdução”, vol. XIV, p.96).
O que nos parece, seguindo nossa proposta especulativa, é que o narcisista secundário viveria à cata de sinais dos primórdios, procurando em objetos índices daquilo que viu na primeira mirada no espelho do olho da mãe que o inaugurou como eu. Mas o que foi que ele viu naquele espelho? A si mesmo? Talvez melhor seria dizer a imagem daquilo que o espelho-olho-mãe instaurou e autorizou (e alienou) como sendo o eu. Retomando o que já havíamos dito acima, considerando a semiose peirceana, essa imago primeira, aquele que mira e o outro-mãe, formalizam uma relação entre os três elementos de uma semiose, sendo que a imago é um primeiro de um segundo (o outro-mãe) para um terceiro (aquele que mira), e o primeiro é o signo, o segundo é o objeto, e o terceiro é o interpretante.[11]
[11] “Um signo intenta representar, em parte, pelo menos, um objeto que é, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo que o signo represente o objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente de tal modo que, de certa maneira, determina, naquela mente, algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa imediata ou determinante é o signo e da qual a causa mediata é o objeto pode ser chamada de interpretante.” (SANTAELLA, 2001, p.42).
E, considerando, com Santaella (2005), que a vocação do signo visual, sua qualidade imagética é evocativa, tem por destino apontar, referencializar, produzir como que ecos visuais relativamente ao seu objeto, apostamos na hipótese de que, no narcisismo primário, deve ocorrer uma semiose que, ao mesmo tempo em que inaugura o eu, na imediatez da inauguração faz com que aquele que ainda não é, por meio do espelho que o devolve a si mesmo na condição de eu, vislumbre o outro oculto por detrás do espelho. E esse estado de coisas, na sua complexidade e ambivalência, pode bem ser o que busca o narcisista secundário em suas miradas nos objetos. Freud parece nos dar uma pista disso quando afirma que o narcisismo dos homoxessuais esconde o amor da criança por sua mãe:
O menino reprime seu amor pela mãe; coloca-se em seu lugar, identifica-se com ela, e toma a si próprio como um modelo a que devem assemelhar-se os novos objetos de seu amor. Desse modo ele transformou-se num homoxessual. O que de fato aconteceu foi um retorno ao auto-erotismo, pois os meninos que ele agora ama à medida que cresce, são, apenas, figuras substitutivas e lembranças de si próprio durante sua infância – meninos que ele ama da maneira que sua mãe o amava quando era criança (FREUD, 1996, O.C., “Leonardo da Vinci…”, vol. XI, p. 106).
Refletindo sobre a análise de Freud sobre a infância de Leonardo da Vinci, André Green afirma que “Freud nos permite predizer que o narcisismo é ele mesmo aparência e que por trás dele sempre se esconde a sombra do objeto invisível.” (1988, p. 36). Porém, talvez possamos inferir que, ao menos no caso do narcisismo primário, esse objeto invisível – a mãe – imprime na criança (esta na posição semiótica de interpretante), por meio da imago, suas qualidades de sentimento, nas quais a criança se funde, ou seja, estaria em jogo no narcisismo, além da indexicalidade imagética, seu aspecto icônico que evocaria as qualidades de sentimento do objeto da tríade semiótica que, na posição do interpretante-bebê seriam remáticas, mera hipótese, e assim permaneceria como alvo do desejo regressivo no narcisismo secundário.
Observando o narcisismo por esse prisma, e retomando o nosso percurso especulativo, nos deparamos com a delicadeza, profundidade e complexidade do narcisismo que, se envolve júbilo e sedução, parece também envolver tensões, saturações da libido e desprazer, de modo que nos parece fundamental termos em mente toda essa complexidade para o acolhimento adequado do analisando na clínica. Por outro lado, o esforço de compreender o fenômeno do narcisismo apontará sempre um débito, uma zona de sombra incognoscível, mas, talvez, a poesia possa nos revelar essa área sombreada soprando-nos, por outras vias que não a do entendimento racional, um cadinho mais a respeito dela. Embora guarde a poesia também os seus segredos, nos obsequia revelando-nos deles uns bons bocados que mobilizam nossa intuição.
Por fim, dentre as especulações aqui apontadas, acrescentemos que o mito de Narciso nos faz pensar que, ao acolher o analisando patologicamente embebido das águas narcísicas, o psicanalista fará bem em saber que essas águas não são nada rasas nem translúcidas, e que envolvem elementos primais preponderantes e intricados; e que, como Eco, sucumbirá à tentativa de acessar o analisando se o fizer, de imediato, pela via da interpretação, compreendendo esse termo como relativo ao campo do discursivo.
Referências teóricas
– BRANDÃO, Junito de Souza. 1987. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes. Vol. II. Cap. VI.
– FREUD, Sigmund. 1996. Obras completas. “Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua Infância” (1910). Rio de Janeiro: Imago. Volume XI.
– ______________ . 1996. Obras completas. “Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia (Dementia Paranoides)” [O caso Schreber] (1911). Rio de Janeiro: Imago. Volume XII.
– ______________ . 1996. Obras completas. “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução” (1914). Rio de Janeiro: Imago. Volume XIV.
– ______________ . 1996. Obras completas. “Conferência XXVI. A Teoria da Libido e o Narcisismo” (1917). Rio de Janeiro: Imago. Volume XVI.
– GREEN, André. 1988. Narcisismo de vida. Narcisismo de morte. São Paulo: Escuta. Cap. I.
– LACAN, J. 1998. Escritos. “O Estágio do Espelho como Formador da Função do Eu”. Rio: Jorge Zahar.
– PEIRCE, C. S. 1977. Semiótica. São Paulo: Perspectiva.
SANTAELLA, L. 2001 e 2005. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal. São Paulo: Fapesp/Iluminuras.
– TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org). 1976. Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo.
Referências poéticas
– BARBOSA DE CARVALHO, Raimundo Nonato.2010. “Metamorfoses em tradução”. São Paulo:USP. Relatório de pós-doutoramento.
– CAMPOS, Haroldo de. 1998. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva.
– CASTILHO, António Feliciano de. 1841. As metamorphóses de Publio Ovidio Nasão. Lisboa: Imprensa Nacional.
– FREIRE, Francisco José.1771. “As transformações de Publio Ovidio Nasam”. Apud PREDEBON, Aristóteles Angheben.2006.”Edição do manuscrito e estudo das ‘Metamorfoses’ de Ovídio traduzidas por Francisco José Freire”. São Paulo:USP. Dissertação de mestrado.
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