Quem me faz sofrer?
Eu quero, mas não consigo sair desse lugar de sofrimento.
A responsabilidade pelo sofrimento psíquico é uma questão delicada e precisa ser abordada caso a caso, mas seria possível dizer algumas palavras gerais sobre quem ou o que nos faz sofrer?
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A Psicanálise é um campo complexo e, como tal, compreende que as questões psíquicas não podem ser abordadas à luz de um pensamento simplificador do tipo ou/ou (ou ama ou odeia, ou sofre ou curte, ou quer ou não quer, etc.). É que o inconsciente é o lugar das incongruências, do convívio dos contrários, da permanência das marcas contraditórias deixadas pela aventura de viver.
A Psicanálise ocupa-se do mundo interno da gente (o intrapsíquico) sem deixar de considerar o ambiente externo onde a gente vive. Ou seja, embora as questões psíquicas de cada um de nós sejam nossas construções mentais, o mundo inconsciente se constitui na relação com os objetos externos. Porém, nossas ações, comportamentos, escolhas são, em grande medida, sobredeteminados por desejos ambíguos e ambivalentes que moram dentro da gente, no inconsciente, esse desconhecido mundo em turbilhão.
Dito isso, começamos a compreender que as agruras e as alegrias que experimentamos na vida dependem das relações que estabelecemos entre nosso mundo interno e o ambiente externo que conosco interage. E, por outro lado, somos o que somos graças a nossa história singular, ou seja, graças a como nós nos constituímos ao longo de nossa vida que, por sua vez é resultado das relações possíveis entre o que há de inato em nós e o ambiente em que estamos imersos. E para complicar mais um pouco essa história, o que somos é resultado do processo da vida, do movimento da vida, de modo que somos o que somos sem que isso signifique total imutabilidade. Em termos filosóficos, podemos dizer que ser é um estado transitório, um fotograma do vir a ser.
Mas se viver pressupõe transformação, por que não conseguimos agir de modo diverso, sair de determinadas situações que nos afligem? Por que repetimos escolhas e situações, mesmo que nos causem sofrimentos? Por que, por exemplo, sabendo que lhe faz mal, uma pessoa permanece num determinado vício, como o fumo ou o álcool, mesmo querendo livrar-se dele? Ou mantém uma relação amorosa com outra pessoa, mas que lhe causa sofrimento? E por que quando sai da relação e encontra um novo parceiro ou parceira, repete o mesmo padrão da relação anterior? Ou por que determinadas pessoas respondem sempre com muita angústia a determinadas situações corriqueiras como falar em público, entrar em elevador, viajar de avião, mesmo tendo consciência de que se trata de eventos inofensivos? Esses e outros exemplos, que poderiam se multiplicar, parecem contradizer o pressuposto da condição de ser como estado provisório passível de mudança. E contradiz mesmo. É que a nossa capacidade de mudança convive com a nossa tendência à permanência, à repetição. E repetir é um jeito de resistência psíquica à mudança. [A resistência do paciente à sua própria terapia>>]
Mas, para complicar um pouquinho mais, é preciso dizer que, no que se refere às questões psíquicas, a própria repetição também pode ser condição de mudança. É o que acontece, por exemplo, em cenas de trauma, que são revividas em sonhos ou atualizadas em situações análogas do presente na condição de fobias. É o nosso inconsciente tentando desatar o nó do trauma, voltando a ele para tentar elaborar o que, à época, foi demais para nós.
Mas, a repetição das escolhas inconscientes e dos nossos comportamentos em dadas situações são também as respostas que, na nossa história psíquica, aprendemos a usar em determinadas situações da vida. A repetição é o que, até então, podemos, conseguimos, conhecemos. E para ficar mais complicado ainda, devemos dizer que, muitas vezes, o próprio sofrimento pode estar promovendo algum ganho inconsciente que desconhecemos. Confuso, não é? Sim, muito complicado mesmo. E é por tudo isso que não se pode conjecturar com simplificação sobre quem ou o que é responsável por nossos sofrimentos. Por outro lado, sair deles ou lidar com eles não é tarefa fácil. É preciso delicadeza, cuidado e respeito no trato com quem está sofrendo. O sofrimento psíquico é por demais relevante e pode conduzir a complicações bastante sérias. [A dor silenciosa que os outros desprezam >>]
Por outro lado, cada paciente é um universo singular em turbilhão que pede uma atenção igualmente singular. Se, para o filósofo e escritor francês Blaise Pascal, o coração tem razões que a própria razão desconhece, devemos acrescentar que cada coração é único.
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